Foi Kant quem, indagado se vivemos numa época esclarecida, respondeu, cauteloso, que certamente vivemos numa época de esclarecimento, ou seja, ainda há muito o que esclarecer, vez que a racionalidade, que se emprega no domínio da natureza externa, incorpora-se na formação da subjetividade, a qual se vê efetivada, principalmente, no domínio da natureza interna.
Em outras palavras: se em nome da autoconservação o homem aprendeu a enrijecer o eu em detrimento da natureza, nesta mesma lógica a mulher, imagem enigmática da natureza, de beleza e sedução irresistíveis, insere-se no universo masculino não só como indeterminação, mas como ameaça ao ordenamento patriarcal.
Colocando secretamente em confronto a autoridade masculina, o culto às profetisas dos templos sagrados na era pré-cristã representava um perigo à dominação de uma sociedade comandada por homens, contra o qual o “caça-às-bruxas” foi a expressão mais cruel de violência contra a mulher na Idade Média.
Desta maneira, ao longo dos tempos, a trajetória da mulher pela cultura se fez sob o signo da dominação, o que remete, em razão das condições sociais ainda hoje vigentes, à adoção do feminismo, entendido aqui como uma política de lutas pelo reconhecimento dos direitos da mulher, vez que a sociedade masculina, projetando-a como impotente, só lhe concede poder pela mediação do homem, ou melhor, a injustiça que se pratica contra ela é a justificação legal para sua opressão.
Mas para entender de maneira histórica a representação da existência da mulher enquanto sujeito e como lhe foram caras suas conquistas sociais, há especialmente que se aludir, no século XVIII – do esclarecimento –, a filósofa Mary Wollstonecraft, que já naquela época incluía o direito da mulher entre os direitos da humanidade, e, posteriormente, às lutas que se travaram para que lhe fossem garantidos a educação formal em universidades (1879) e o exercício político do voto (1932).
E só recente, pelo Estatuto da Mulher Casada, em 1962, foi civilmente considerada capaz, sem depender de autorização do marido para trabalhar fora e assegurado o direito da guarda dos filhos em caso de separação. E apenas em 1988, pela promulgação da atual Constituição, à igualdade de direitos entre gêneros.
Portanto, visões de mundo sobre a mulher se transformam principalmente pela ação das mulheres. Na década de 40 no Brasil dois textos musicais apresentavam um perfil da mulher ideal: “[..] que saiba lavar e cozinhar / que de manhã cedo me acorde para trabalhar” (2) e “às vezes passava fome ao meu lado / e achava bonito não ter o que comer” (3). Possivelmente era este o perfil feminino que circulava na sociedade brasileira, vez que o fato de elas serem apresentadas de modo tão similar não é simples coincidência. E as mulheres do século XXI? Certamente, são ainda hoje registradas de “Emília” e “Amélia”, mas, ao lado de tantas outras, buscam realizar-se profissionalmente, conquistam sua autonomia econômica e questionam a todo instante o estereótipo da mulher ideal.
Referências
(1) ADORNO, Theodor W. Minima Moralia. São Paulo: Ática, l992.
(2) LOBO, Haroldo. BATISTA, Wilson. Emília. Rio: Colúmbia, 1941. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/haroldo-lobo/691754/>. Acesso em: 2 mar. 2017.
(3) ALVES, Ataulfo; LAGO, Mário. Ai que saudades da Amélia. 1941. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/mario-lago/377002/>. Acesso em: 2 mar. 2017.
Por Arlene Borges da Cunha
Presidente da Comissão Processante da SRE Metropolitana B
Professora da Rede Pública Estadual.
Especialista em Gestão Escolar
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